9 de março de 2004

Crónica do dia em que o jazz morreu

Lisboa, 2006

José Rodrigues dos Prantos dá a notícia na RTP, «O jazz morreu ontem, aos 106 anos de idade, vítima de morte súbita, e a RTP mostra-lhe tudo». Enquanto passa a reportagem Prantos grita para a régie «Eh pá, quem é o gajo que morreu que não está aqui nada no teleponto sobre ele?!». «É o que dá cortar custos a direito... agora até nas palavras poupam».

Na TVI, uma peça que se repete de 5 em 5 minuntos no Jornal Nacional anuncia: «O jazz morreu mas ainda se faz ouvir. Não perca já a seguir em exclusivo na TVI uma entrevista com o espírito do defunto».

Na SIC, o «Trombas Notícias» informa: «O Jazz morreu. Sofia Cardeira mostra-lhe em exclusivo os vestidos que os VIP vão usar no funeral». Durante o programa alguns VIP dizem das suas. Isabel Amendoeira comenta: «Calha-me imensamente mal que tenha sido hoje porque, sabe, é o meu dia de ir ao cabeleireiro e fazer umas compras, porque eu tenho uma vida muito atarefada, mais do que o comum dos mortais». Paula Trombone comenta em tom crítico: «Sabe, o jazz, essa música de pretos, praticamente vinda das cavernas, não me diz muito, é pouco educada, pouco polida. Mas enfim, é um acto social e portanto lá estarei. Agora, sabe, não é socialmente correcto morrer sem avisar por escrito os convidados para o funeral... É uma questão de chá e realmente a música clássica nisso é um autêntico serviço completo. E Vista Alegre!». Já Kiki Buraca afiança com a sua suprema sabedoria: «Estou profundamente triste porque, sabe, o jazz nasceu aqui em Cascais e era convidado regular de casa, praticamente da famíliaaaaaaaa. E depois eu própria podia ter sido uma jazzwoman, como a Ella Fitzgerald, só que não gostava muito de estar em casa...». A rematar, José Pastel Negro afirma: «Pronto, eu não posso dizer que gostasse muito de jézz mas sabe que tínhamos muito em comum. É que por exemplo o Charlie Haden também teve problemas no aeroporto e nesse sentido identifico-me imenso. E assim sempre posso estrear a minha echarpe da Dior!.

No jornal «25 horas» o jazz é manchete: «Ministra mata jazz por asfixia!». No interior um jornalista distraído, informa: «O jazz morreu hoje, estando presumivelmente morto».

Entretanto, no Governo instala-se o pânico. O que fazer com o defunto?

O Primeiro Ministro, um tal de Paulo Janelas, chama ao gabinete a nova Ministra da Cultura, uma tal de Manuela Ferve o Leite, despromovida ao falhar a redução do deficit.

- Descula lá, Manela, mas tu é que tens de resolver isto. Tu é que o asfixiaste ao cortar-lhe os subsídios e portanto agora atura tu essa cambada de jazzómanos comunistas que não me larga!.

De regresso ao Palácio da Ajuda, a mal amada Ministra reune-se com o assessor de imprensa:

- Olhe lá, o que é que acha de o enterrarmos numa vala comum, afinal era uma música do povo e ainda poupávamos um dinheirão, que neste país não se pode nem morrer!
- Senhora Ministra, com sua licença e sem querer ofender, mas permita-me contrariar. É que já ligou para aqui um tal de Jazzé Duarte a exigir o panteão nacional...
- Mas quem é esse?
- Diz que tem um programa de rádio há 40 anos e que se o jazz não for para o panteão ele corta as barbas e há-de fazer com que a senhora Ministra as engula, se me permite reproduzir as palavras dele...
- Francamente! O panteão é para a cultura portuguesa; É onde está a Amália. É um local sagrado.
- Pois, tem toda a razão senhora Ministra, mas os amantes do jazz alegam que também lá pusemos o lançamento do Harry Potter...
- Olhe lá, oh Zé Manel, quantas pessoas é que ouvem jazz em Portugal? Diga lá...
- Não sei...
- Pois, tá a ver, é tudo uma questão de números. Eu até era boa nisso, não fosse o outro tirar o lugar ao outro e eu ainda lá estava a cortar custos e a aumentar o IVA e a cobrar por conta do que os desgraçados não haviam de ganhar!
- Senhora Ministra, se me permite concluir, eu diria que são aí uns 10 000, no máximo.
- Ah, só 10 000, isso nem chega ao número de eleitores de uma freguesia do interior daquelas a que cortámos os transportes públicos por não serem rentáveis!. Vai para a vala comum e não se fala mais nisso.
- Concordo Senhora Ministra, até porque, bem vistas as coisas, o jazz já estava em decadência. Pois se em 1971 eram 10 000 no Cascais Jazz e hoje ainda são 10 000...
- Bom, de qualquer maneira é melhor contactar o Senhor Presidente da Câmara Municipal a ver se ele tem lá alguma vala com um aspecto melhorzito...

Do outro lado do telefone, Encanta Flops atende no seu estilo inconfundível:

- Daqui Encanta Flops. Estou a trabalhar a uma média de 14 horas por dia. Em que posso ser útil ao cidadão munícipe e eleitor?
- Bom dia, Flops. Olha estou aqui às voltas com o jazz e queria que me arranjasses aí uma vala comum para o empandeirar que já me está a dar cabo da imagem na comunicação social.
- A sério? Não sabia que o gajo se tinha finado. Tenho de enviar um telegrama aos descendentes do Chopin.
- Mas afinal tens ou não a vala?
- Mas oh Manela, eu agora estou aqui metido é no buraco do Marquês e não tenho tempo para isso. Só se a gente o enterrasse debaixo do túnel e dizíamos aos tugas que assim ficava no centro de Lisboa e no coração dos portugueses. Olha que bonita frase esta era para os media... Por falar nisso vou já chamar o meu assessor de imprensa para ver se me arranja mais umas frases porreiras para dizer aos jornalistas. Já te ligo.

Cinco minutos mais tarde, Flops e o assessor de imprensa reunem-se no Kremlin.
- Diga, senhor Presidente...
- Ainda não, ainda não. Tudo a seu tempo!
- Como?
- Eh pá parece que um tal de jazz ou do jezz ou lá o que é isso resolveu morrer agora e é preciso que me arranjes aí umas frases bonitas para dizer às rádios e às televisões durante o funeral.
- Então mas vai à cerimónia?
- Tenho de ir. É um evento cultural e eu sou um homem de cultura...
- Mas olhe que o jazz não tem audiências e além disso dizem que frequentava muito a noite lisboeta, improvisava, nunca acabava nada.... Enfim, não lhe recomendo nada associar-se a esse evento que tem tão pouco a ver com o Senhor Presidente.
- Tens razão pá! Vou mas é telefonar ao PR que o gajo é que diz que gosta de jezz. Ele que fique com ele lá em Belém e que lhe faça proveito. Que o ponha nos Jerónimos.

- Está lá, Senhor Presidente?
- Sim, sim, sou eu, estou aqui a escrever um discurso de três horas mas diga lá...
- É por causa do jazz, bem vê, morreu, coitado, e gostávamos de dar dignidade à cerimónia, sepultando-o nos Jerónimos.
- Pois bem, pois bem, não me parece mal. Vou ligar ao Toneca porque não vá ele, como meu sucessor, ter uma ideia melhor. Já lhe ligo.

- Estou, Toneca?
- Oh caro amigo, que pretende dialogar comigo? É para dizer quando sai daí, é?
- Nada disso. É por causa do jazz. Parece que morreu e o Flops quer sepultá-lo nos Jerónimos. O que é que achas disso?
- Bem, eu, portanto.... ora... vendo bem... Camões... Jerónimos, ah.... portanto é decidir.
- E pá, és sempre a mesma ***** pá. Decide lá!
- Vamos fazer assim, manda o Flops pôr o gajo em câmara ardente durante uns tempos com o pretexto dos amantes do gajo terem tempo para se despedir dele que eu quando estiver no teu lugar logo decido.

Lisboa, 2020

Notícia TVI: «É o escândalo. Um morto que morreu há 14 anos continua por enterrar por incúria do Estado português. Vamos já em directo para o Mosteiro dos Jerónimos! Não se esqueça de colocar no nariz o receptor de odor interactivo para viver todas as emoções desta reportagem».


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