17 de agosto de 2004

Archie Shepp: «Somos prisioneiros da juventude»

[«Jazz no País do Improviso!» reedita algumas das entrevistas realizadas entre 1995 e 1999 e publicadas no jornal «A Capital» e na revista «O Papel do Jazz». Hoje apresentamos a conversa que gravámos com Archie Shepp em 1997, músico polémico e com um forte discurso político.]

Em entrevista a «A Capital», Archie Shepp mostrou-se crítico do sistema e algo ressentido com a indústria musical. O saxofonista é, definitivamente, um músico político que paga com o anonimato o preço da frontalidade. Em concerto, no Teatro da Trindade, ofereceu um espectáculo interessante e pleno de improvisação.

- «A Capital»: O que é o jazz para si?

- Archie Shepp: Eu não uso o termo jazz. O jazz é uma realidade histórica. Antes da guerra civil, quando os negro ainda eram escravos não podiam tocar trombones, trompetes e saxofones porque só os brancos o podiam fazer. Depois da guerra, a banda da Marinha dos EUA vendeu um largo número de instrumentos de sopro a um preço muito baixo, e foi aí a primeira vez que os negros puderam tocar esses instrumentos. Em 1917, um grupo chamado The Original Dixieland Jazz Band, composto por brancos, gravou música no estilo jazz e daí o termo. Contudo, eu não uso esse termo porque ele significa simplesmente negros a tocar instrumentos de sopro no estilo blues.

- O que é a sociologia do jazz que ensina na universidade?

- É a sociologia da música afro-americana. Nesse sentido, não vejo qualquer diferença entre a música que eu toco e a de Prince ou de Michael Jackson. O facto de não gravarmos juntos não tem nada que ver com a música, mas sim com a corrupção do negócio que envolve a música afro-americana. O termo jazz não significa mais do que Coca-Cola ou Marlboro. É uma marca comercial.

- Como é que chegou ao jazz?

- Pelo meu pai. Ele tocava banjo e eu cresci entre grandes músicos como Lee Morgan, John Coltrane, Reggie Workman... Por isso fui arrastado para os blues. Penso que esta música e a sua atitude é essencialmente blues. Tenho orgulho em ser um bluesman.

- Ainda é um músico anti-fascista?

- Sim, certamente. Sou contra os skinheads e todo o género de pessoas e movimentos maus para a nossa sociedade.

- Há em si uma forte carga política...

- Considero-me envolvido e preocupado com o que se passa à minha volta. Todos somos políticos. Testemunhámos isso recentemente em Espanha, com o assassínio do jovem [pela ETA]. Pessoas da direita e da esquerda estavam contra esse tipo de resposta política.

- Essa politização não é muito comum no jazz...

- Bem, eu faço parte da evolução da sociedade negra. Certamente que a minha mãe e o meu pai fizeram parte dessa influência, assim como a forma como cresci. Eu absorvi a opressão, fui vitimizado.

- A sua música seria diferente se tivesse nascido branco?

- Depende de se tivesse nascido pobre ou rico.

- O seu público é branco ou negro?

- A minha audiência sempre foi branca. Penso que esta música a que chama de avant garde é essencialmente música da classe média burguesa. É frustrante e por essa razão é que regressei aos blues, porque queria chegar a uma audiência negra mais vasta.

- E conseguiu-o?

- Nem por isso. Não tem nada que ver com a música que eu toco. Tem que ver com o controlo da música e a música que eu toco é essencialmente controlada por brancos. Eles é que determinam quem vai ter êxito. Sou penalizado porque sempre fui muito político na minha carreira.

- Há 10 anos que não vinha a Portugal. O que é que aconteceu entretanto?

- É a isso que eu me refiro. É o sistema. A maior parte dos produtores daqui trabalham com produtores estabelecidos nos EUA e essas pessoas não me contactam muito. Entretanto, tenho ensinado na Universidade do Massachussets.

- Quais são os seus planos para o futuro?

- Estou interessado no teatro e estou a trabalhar numa série de coisas. Gostava de produzir música, gostava de ter um clube e um estúdio e gostava de produzir outros músicos. Não estou só a pensar em tocar saxofone porque há muitas implicações na música. E gostava de contar a minha história e fazer filmes e algumas das coisas que o Spike Lee faz. Mas na minha idade é difícil. Poucos afro-americanos têm hipótese de triunfar nas artes.

- Mas há exemplos de êxito, como o Michael Jackson...

- Eu não o considero um herói...

- Para os miúdos é...

- O que é que os miúdos sabem? Os miúdos são ignorantes. Os adultos têm medo dos miúdos e de fixar as regras que deviam. Por isso, agora, os miúdos são os adultos e os adultos são as crianças. Somos prisioneiros da juventude. Pensávamos que o progresso era deixar que eles fizessem o que queriam e isso foi um erro colossal. Do ponto de vista histórico e pela minha experiência pessoal, os adultos é que têm de ensinar as crianças.

- Mas nos anos 40 e 50 os músicos de jazz negros eram heróis?

- Sim, e quem é que já fez um filme sobre isso? O filme sobre o Charlie Parker não tinha nada que ver com ele. Era sobre a sua relação com Chan Parker (a sua mulher). Dizia-nos pouco sobre a importância do músico Parker. Até o Miles Davis foi excluído do filme! Um bom filme sobre Lester Young seria algo fabuloso.

- Os jovens não o conhecem...

- E o que é que eles sabem? Dou um exemplo. Um repórter estava a fazer um artigo sobre mim, em Paris, e enquanto eu estava a ser fotografado apareceram uns miúdos vindos de uma escola e o mais novo deste grupo perguntou-lhe: por que é que lhe estão a tirar fotografias? Ele não é famoso. Por isso não espero que estes miúdos me informem. Será melhor que nós os informemos. Eles pensam que as únicas pessoas que são famosas são as que ganham milhares de dólares e aparecem na televisão. Mas são apenas mediáticos.

[entrevista publicada originalmente no jornal «A Capital», de 27/07/1997]


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