10 de agosto de 2004

McCoy Tyner: «O jazz é uma música aberta»

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[«Jazz no País do Improviso!» vai reeditar algumas das entrevistas realizadas entre 1995 e 1999 e publicadas no jornal «A Capital» e na revista «O Papel do Jazz». Começamos esta série com o pianista McCoy Tyner, numa conversa gravada em 1997, por ocasião da sua passagem pelo Estoril Jazz.]


Numa tarde de Julho, na véspera da sua actuação no Festival Estoril Jazz, falámos com McCoy Tyner, pianista virtuoso e lenda viva do jazz. Quando nasceu, em Filadélfia, há 59 anos, Tyner estava longe de adivinhar o seu impacto num género musical que ainda não vivera a revolução Bebop e, sobretudo, no piano. Juntamente com Bill Evans, Tyner foi e é ainda hoje uma referência indelével para os pianistas de jazz. Profissionalmente, iniciou-se ao lado de Benny Golson e Art Farmer, em finais dos anos 50, para logo depois integrar o quarteto de John Coltrane, um dos mais importantes e influentes da história do jazz, no qual se manteve entre 1960 e 1965, levando Coltrane a explorar os meandros do modalismo. Desde então, Tyner assumiu a liderança dos seus próprios grupos, normalmente trios, ou surgiu em bandas All-Stars, ao lado de Sonny Rollins, Ron Carter e Al Foster.

Nesta entrevista, Tyner fala-nos da sua ligação a Golson e Coltrane e, sobretudo, da vida de jazzman, além do seu mais recente trabalho discográfico, «What The World Needs Now», dedicado à música de Burt Bacharach, um compositor cujos temas nunca foram muito populares entres os jazzmen, apesar da admiração confessa de Miles Davis pelo registo tímbrico das suas obras. Embora a incursão de Tyner por terras de Bacharach possa surpreender, a verdade é que já em 1966 o pianista gravara o tema título deste álbum, juntamente com Stanley Turrentine, para a prestigiada Blue Note. Acresce que também Dave Douglas, em entrevista a «O Papel do Jazz», manifestou semelhante interesse por Burt Bacharach, cuja música acaba de ser revisitada por Elvis Costello e alguns músicos de jazz, em disco a editar brevemente pela editora de John Zorn.

P - Quais foram as suas influências iniciais?

R - Especialmente Bud Powell e Thelonious Monk e, mais tarde, Art Tatum. Mas Bud Powell viveu no meu bairro durante três meses por isso...

P - Como foi a sua aprendizagem?

R - Comecei a tocar piano aos 13 anos. Estudei com dois professores, um para a iniciação e outro que me ensinou piano num nível mais avançado, e formei uma banda de rhythm and blues com colegas de liceu. Depois envolvi-me no jazz moderno e alguns músicos mais velhos ouviram-me, gostaram e começaram a ensinar-me e estudei numa escola de música.

P - Há quem defenda que o jazz não se ensina...

R - O jazz é algo que não se pode ensinar na escola. Tem que se aprender música mas depois tem que se viver. O jazz é vida; fala da vida.

P - E ainda faz sentido tocar jazz?

R - Sim, claro que faz sentido. É muito pesoal, muito expressivo. Não é uma coisa antiga. Há ideia de que o jazz é algo geracional, mas ele continua a existir e penso que é importante para os jovens porque é uma forma de expressão individual. Existem regras mas podem ser quebradas e alrteradas. O jazz é uma música aberta, em oposição a outros géneros de música muito estruturados que existem apenas para excitar as pessoas e são muito preconcebidos.

P - Da nova geração de pianistas, quais considera mais interessantes?

R - Stephen Scott, Eric Redd, Benny Green, Mulgrew Miller e Cyrus Chestnut (um grande compositor). Temos uma impressionante nova geração de pianistas a aparecer.

P - Ainda assiste a concertos de jazz?

R - A verdade é que ja não vou a muitos clubes de jazz porque passo a vida neles e em tournées e quero ir ver outras coisas. Vou ver musicais na Broadway, ballet africano e teno ver coisas diferentes.

P - A vida de um jazzman é passada a viajar...

R - Sim, viajo muito mas gosto de tocar e voltar a casa. Há bandas de rock e de blues que passam 10 meses na estrada! Por exemplo, o BB King, que viaja muito, tem uma camioneta especial que é a sua casa. Eu prefiro a minha casa.

P - Como é que conheceu John Coltrane?

R - Bem, eu era muito próximo do John Coltrane. Toquei com ele durante seis anos e conheci-o quando tinha 17 anos. Ele tocava com Miles Davis e uma vez, quando regressou a casa, a Filadélfia, isto por meados dos anos 50, encontrámo-nos, tocámos e ficámos a conhecer-nos. Ele era como um irmão.

P - O Jazztet apareceu depois...

R - En envolvi-me no Jazztet porque sempre que o Coltrane queria deixar o grupo do Miles Davis para formar o seu próprio grupo o Miles dava-lhe mais dinheiro e ele acabava por ficar. Entretanto, o Benny Golson apareceu e fiquei com ele durante sete meses.

P - Nunca chegou a trabalhar com Miles Davis?

R - Não... O Miles juntou-se ao quarteto do John Coltrane uma vez e antes disso veio ouvir-nos durante duas noites. Mas ele tinha um estilo diferente. Eu conheci-o, mas realmente nunca tocámos juntos. Era um homem interessante, com uma boa visão musical.

P - Como é que planeia os seus álbuns?

R - Faço o que sinto. Por outras palavras, passo por várias fases e tento contrastar aquilo que faço. Se faço algo como este álbum com cordas, o próximo álbum será um álbum latino, com cubanos. Por isso, eu não trabalho de forma sequenciada ou planeada. Faço um trabalho e depois tento pensar em algo que contraste com aquilo que acabo de fazer. Este meu último álbum foi uma surpresa para muita gente...

P - Porquê, por ser dedicado a Burt Bacharach?

R - Porque é diferente. É dedicado ao Burt Bacharach porque nunca ninguém lhe tinha dedicado nada, ao contrário de a outros compositores cujos temas estão sobreproduzidos. Gosto da música dele e gostei de o fazer. Tem um ambiente romântico e tem temas que foram basicamente escritos nos anos 60 por um compositor que ainda está vivo. Não é como Cole Porter ou Richard Rogers, que já morreram. Burt ainda está vivo.

P - Ainda é possível inovar no piano?

R - Sim! Bem, eu fiz o que podia para mudar as coisas. Tem de haver uma continuidade e novas vozes. Quando eu apareci havia o Bud Powell, Thelonious Monk e Oscar Peterson e eles encorajavam-me a continuar. Mas eu nunca quis ser igual a nenhum deles porque sei que isso é impossível. Mesmo quando eu era jovem queria tocar as minhas ideias e ter a minha própria voz. Penso que todos temos a nossa voz interior.

E, depois do jazz, o Mundo. Finda a entrevista, McCoy Tyner mostrou-se ainda interessado em conversar sobre a sociedade actual, num diálogo que se arrastou tarde fora e em que participou ainda um elemento da equipa de promoção da Impulse em Portugal. Considerações políticas e sociais de um jazzman que se mostrou crítico com os mass-media: a imprensa, porque não respeita a privacidade das figuras públicas (falou-se, então, da Princesa Diana) e a televisão, porque nivela por baixo e, em resultado da cultura dos media, uma sociedade espectáculo em que mais importante do que as qualidades artísticas são as aptidões para captar a atenção dos media.

A música de consumo também não escapou à análise, considerando-a Tyner demasiado rotinada e preconcebida. Não que o pianista não aprecie outros géneros musicais, nomeadamente o rhythm and blues, como ele próprio "confessou".

Motivo de gargalhadas e de estupefacção geral foi a notícia que lhe dei da existência de um site na internet em que é possível esbofetear as Spice Girls. Virtualmente, claro...

Já o Sol baixava sobre a Baís de Cascais quando nos despedimos de McCoy Tyner, esperançados de o rever brevemente entre nós com a sua música honesta (música pela música, sem vedetismos) e o seu virtuosismo.

O jazz é uma música aberta...

[entrevista publicada originalmente em «O Papel do Jazz», n.º 2, Livros Cotovia, 1997]


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