22 de maio de 2005

O amante de jazz...

Criatura de hábitos nocturnos, ele anda aí, normalmente pelos clubes de jazz ou pelos concertos e festivais.

É o amante de jazz e tem características próprias que permitem identificá-lo como membro da espécie a que pertence.

Primeiro que tudo fala minimamente inglês, idioma essencial para soltar uns yeah!! durante os solos mais emotivos ou para pedir temas nos encores:

- Seven steps to heaven!
- My funny valentine!
- Autumn leaves!

Estes pedidos são disparados com um misto de ordem, de arrogância, de conhecimento de causa e de direito à audição do tema verbalizado, pelo que normalmente terminam numa voz arrastada.

Segundo, os músicos que vêm tocar à sua terra são sempre "do melhor" pelo que lhe é absolutamente impossível aconselhar os amigos a seleccionar os concertos mais interessantes. "É tudo bom! Estes tipos são umas feras!", afirma com convicção esmagadora.

Terceiro, conhece obviamente o produtor do concerto e os músicos, dando pormenores sobre a sua vida privada, quanto mais sórdidos e íntimos melhor:

- Este esteve na cadeia...
- Ela canta bem, mas é lésbica...
- Este tipo já passou muito na vida... É um desgraçado, mas toca bem como o caraças!

Quarto, no momento crucial em que o concerto está a decorrer tem de identificar os temas logo aos primeiros acordes e evidenciar bem essa sua capacidade junto dos demais ouvintes:

- Stella by starlight...
- It's only a paper moon!
- Eh pá, este All of You é fabuloso!

Este procedimento é assim como que um código da tribo que permite saber quem é ou não genuinamente do grupo. Está, digamos, para o ouvinte de jazz como dar um só beijo está para as tias da Lapa e da Quinta da Marinha. É tudo uma questão de código. Claro que está liminarmente posta de parte a hipótese de perguntar ao companheiro do lado se o tema em causa é o X ou o Y. Jamais! Ele raramente se engana ou tem dúvidas.

Outro destes códigos é desde logo a palavra jazz. Ele pronuncia-a obviamente como jázz. Os membros alheios ao grupo dizem djézz, coisa que o irrita solenemente, mas que ao mesemo tempo como que o reconforta como membro de uma elite esclarecida.

Quinto, não lhe basta reconhecer os temas, tem também de catalogar imediatamente o jazzman que está a ouvir:

- Canta como o Joe Williams
- É um Coltrane para pior...
- Toca como o Charlie Parker!
- É mainstream...

Aqui a regra é que quanto menos conhecido do grande público fôr o termo de comparação maior é a aparência da sua erudição. Por essa razão, Lennie Tristano é preferível a Oscar Peterson, Charlie Christian é preferível a Wes Montgomery e por aí fora...

Sexto, o verdadeiro amante de jazz acha sempre que o concerto de hoje foi pior do que o de ontem e o de ontem pior do que o anteontem. Isto assegura-lhe ascendência sobre os novos membros do grupo que não tiveram oportunidade de assistir aos grandes concertos do passado glorioso do jazz na sua terra. Não é por isso de estranhar que produza afirmações como:

- Não correu mal, mas não se compara com o concerto de 1971. O tipo já não tem a mesma pedalada... falta-lhe fôlego para o trompete.
- Bom, bom foi em 1990, no Coliseu. Isto agora já não é novidade.

Sétimo, como qualquer amante de jazz que se preze tem na manga umas tantas expressões pseudo qualquer coisa para usar depois do concerto e impressionar bem os amigos, conhecidos e demais ouvidos que estejam por perto:

- O gajo esteve bem na coda...
- Gostei especialmente do modulação rítmica do trompetista...
- A pianista é uma Ellingtoniana...
- A segurança do contrabaixista é impressionante...
- Não gostei muito da maneira como ele improvisa nos rhythm changes...
- Aqueles glissandos saem-lha da alma...

Oitavo, se é realmente um amante do jazz certamente que não lhe passa pela cabeça ir pedir um autógrafo no final do concerto. Isso seria admitir que não conhece bem o músico em causa ou dar-lhe muita importância. Deixá-lo lá com os curiosos... Aqui quer-se um comportamento de indiferença.

Finalmente, já depois do concerto terminado, diz obviamente à namorada:

- Para que estavas a bater o pé no primeiro e no terceiro tempo?! Não percebes nada disto...

Com esta tirada a sua noite está "ganha" e o seu ego bem tratado.

Já pode ir para casa ouvir... jazz.

7 Comments:

At segunda mai. 23, 12:54:00 da manhã 2005, Anonymous Anónimo said...

Se sou assim, abdico de me achar um amante de jazz, coisa que achava que era... Ainda que possa notar aqui e ali uma certa ironia, o texto só parece confirmar aquilo que infelizmente noto quando CONSIGO ir a algum concerto, quer esteja inserido em festivais ou não: uma tremenda dose de arrogância por parte dos 'habitués', visível nos olhares que nos medem de alto a baixo como quem diz 'quem será este tipo, nunca vi esta cara...', aliada a um inegável ambiente-moda, tão cheio de tiques como serão, certamente, aqueles que se poderão ver quer em clubes de vela, de golfe e afins. Entristece-me, isso. Daí que cada vez mais insista em escutar o 'meu' tão querido jazz em frente à aparelhagem cá de casa, de olhos fechados, de preferência com um copo na mão... Escutar o jazz pelo jazz, com todos os riscos e prazeres de não ser 'mais um' a gostar daquilo que alguns atiram cá para fora como sendo, em determinado momento, o 'crème de la crème', colocando assim mais um elo numa cadeia que se aperta em redor do verdadeiro amante de jazz. Desculpe o desabafo. A partir de agora, não quero mais ser um amante de jazz; a partir de agora sei que sou - com orgulho! -, um anarquista do jazz. Abraço.

 
At segunda mai. 23, 11:24:00 da manhã 2005, Anonymous Anónimo said...

Caro Paulo,

É evidente que o texto é irónico, mas é escrito com base naquilo que eu testemunho ao longo de anos e anos a ir a concertos de jazz. Já lá vão praticamente 20.

Não se pode, claro, generalizar, embora toda a crítica o faça.

Eu também não me encaixo neste tipo de ouvinte de jazz e daí ter escrito o texto.

Um abraço e bom jazz!

 
At terça mai. 24, 04:46:00 da tarde 2005, Anonymous Anónimo said...

acho que falta aqui uma das características mais evidentes do amante ou amador de jazz:

o ser um músico de jazz frustrado.

embaraça-me ver esta velha guarda do público de jazz, que gesticula todos os kicks do "one by one", para mostrar a todos que conhece o tema.

embaraça-me como alguém se sente bem vivendo como um cliché ambulante... "eu pertenço à tribo... estalo o dedo no dois e no quatro ...eu trato o barretto por cató" e por aí fora...

 
At terça mai. 24, 04:55:00 da tarde 2005, Anonymous Anónimo said...

O seu texto relata com lamentavel simpatia e condescendência uma realidade que : o elitismo associado à arte.

Fosse o jazz uma forma de arte massificada, e muitos dos habitués seriam adeptos incondicionais do punk, ou de outro estilo musical...

 
At terça mai. 24, 04:57:00 da tarde 2005, Anonymous Anónimo said...

O seu texto relata com lamentavel simpatia e condescendência uma realidade que me indigna: o elitismo associado à arte.

Fosse o jazz uma forma de arte massificada, e muitos dos habitués seriam adeptos incondicionais do punk, ou de outro estilo musical...

 
At quarta mai. 25, 01:38:00 da tarde 2005, Blogger Sacha said...

Muito bom. É que é mesmo assim.

 
At quarta mai. 25, 02:18:00 da tarde 2005, Anonymous Anónimo said...

Caro Zé Maria, não veja ali simpatia, mas antes ironia.

Não faz sentido fazer do jazz uma música de elite porque a sua genese é popular.

 

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