21 de novembro de 2006

E por falar em Espanha e em discos...

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... foi precisamente no país vizinho que conseguimos encontrar um exemplar do CD Closeness, o disco em que Charlie Haden inseriu a gravação do momento em que no Cascais Jazz de 1971 dedicou uma canção ("Song for Che") aos movimentos de libertação dos povos nativos de Moçambique e Angola. Esta gravação escapou por mero acaso ao crivo da PIDE quando este músico foi detido na sequência do seu gesto político, como Paulo Gil relembrou no artigo que publicámos recentemente na revista Blitz:

«Disse-me o Charlie Haden que a gravação do tema "Song For Che", realizada em Cascais naquela noite, se encontrava na algibeira da gabardina que vestiu quando foi detido pela PIDE. Como, na Rua António Maria Cardoso, a gabardina foi pendurada num cabide existente no gabinete em que foi interrogado, e só depois disso é que o revistaram, a PIDE nunca confiscou a gravação...»

E foi assim que em 1976 Charlie Haden pôde incluir parte desta gravação no disco Closeness (no tema «For a Free Portugal»), que Paulo Gil e Rui Neves importaram para Portugal quando o primeiro era director-geral do Departamento de Discos da Valentim de Carvalho.

No disco pode ouvir-se Charlie Haden dizer:

"This next song is dedicated to the black people's liberation movements of Mozambique [imperceptível: Guiné?] and Angola".

Segue-se uma intensa salva de palmas e um urro colectivo de "yeah!" Estávamos em 1971 e o 25 de Abril e o fim da guerra colonial ainda tardavam, mas a insatisfação era agora bem audível.

2 Comments:

At terça nov. 21, 11:14:00 da tarde 2006, Anonymous Anónimo said...

Caro amigo: deixe-me dizer-lhe que esse CD existe desde há anos no acervo da Fonoteca Municipal de Lisboa.

 
At quarta nov. 22, 02:39:00 da tarde 2006, Blogger Rui Azul said...

Caro João,
gostaria de partilhar consigo um texto que redigi recentemente, e aborda aspectos que foram largamente debatidos neste espaço, em Outubro. Fica aqui a visão como músico sobre o tema:

SENTIR E PRATICAR O JAZZ

Aquilo que estabeleci como linhas definidoras do percurso e do que tento pôr em prática, e que penso ser similar ou conter afinidades com o modo de encarar o Jazz de outros músicos, vai na esteira e recolhe elementos do rumo praticado e traçado por diversos músicos, desde Charlie Mingus até à actualidade.
A Mingus Dinasty ou o seu Jazz Workshop é um bom exemplo de como uma banda pode servir de escola formativa e pôr em prática a continuação do legado estilístico de um músico, ao mesmo tempo que cumpre as funções de rampa de lançamento para as gerações seguintes de improvisadores e criadores (poderia citar outros casos, como os Jazz Messengers, ou mesmo a Liberation Orchestra de Charlie Haden...).
Foi o caso de uma dupla que acompanhou e gravou com o próprio Mingus durante vários anos, e passou pela Dinasty: o saxofonista George Adams (que tive o prazer de conhecer e conviver algumas semanas em 1980, quando vivi em Roterdão) e o pianista Don Pullen. Absorvi das conversas inesquecíveis que mantinha com Adams (recheadas de recomendações e ensinamentos com que me bombardeava pontualmente), da audição dos seus discos e da observação dos seus concertos, que o Jazz que praticam norteia-se pela compilação e utilização de material consistente (e com características de "terreno fértil" para germinar novas direcções) que é extraído e recolhido de diferentes estilos e correntes de Jazz:
? Uma das vertentes consiste numa ligação estrutural e processual ao MAINSTREAM, como definidor da linguagem jazzística, como denominador comum, assim como o pulsar do SWING (It don't mean a thing if... it isn't there, right?), ambos constituindo o que eu compararia ao "aparelho respiratório";
? Outra componente é a herança essencial contruída pelo BLUES, que corre nas veias do Jazz (e não só, também corre nas veias do Rock'n Roll, R'nB, Soul, Funkye, Rap, Hip-Hop,..), definindo estados de espírito, e componentes emocionais inerentes ao Jazz, e os reflexos da vivência material e espiritual do ser humano, expressos nas WORKSONGS e GOSPEL. Neste caso trata-se do "aparelho circulatório".
? Incontornável porque é inegável a sua influência (mais ou menos notória) sobre a improvisação de uma vasta maioria de músicos desde então, exercida pela renovação genial que Parker e seus pares trouxeram com o BE BOP. Tenho tendência a estabelecer uma ligação visual, pela cor, com o paralelismo da evolução na pintura e artes plásticas (impressionismo, expressionismo, cubismo,...) e o alcançar da modernidade estilística a meio do séc XX. Patente ao nível melódico, com introdução de um novo fraseado discursivo que incluía notas de passagem não pertencentes à tonalidade de base e que "visitava" as extensões superiores dos acordes (nonas, décimas-primeiras, décimas-terceiras, quer maiores quer menores, 9#,9b,11#, etc..), acordes esses agora "expandidos" resultantes da criatividade musical de Dizzy, Bud Powell e Monk, entre outros, evidenciando as novidades também ao nível harmónico. Funcionam como "agents provocateurs" e agem sobre os sentidos - visão, audição.
? No plano social, a arte enfrenta responsabilidade enquanto agente cultural, forçando o artista a tomar consciência do seu papel perante a sociedade, ao recusar alhear-se egoísticamente ou anular-se numa prática de arte pela arte esvaziada de conteúdo.
A força da irreverência, o direito à indignação, os gritos de revolta libertadora, a abertura das consciências para novas formas de pensar e de encarar a sociedade e o mundo.
A beat generation, os movimentos anti-racistas de Luther King e Malcom X, o "Make Love Not War" dos pacifistas , e enfim, o inconformismo generalizado prenunciaram o aparecimento do FREE JAZZ e da NEW THING.
Penso que a ainda existência de algumas dessas premissas justificam indubitavelmente que elementos dessa estética do Jazz sejam englobados na prática jazzística actual. Porém, não de um modo indiscriminado, aleatório, desprovido de significado, mas encarada pelo músico como uma ferramenta de expressão, de clímax, de alerta, indignação, ou revolta. Cito exemplos dessa utilização nos discursos improvisacionais de George Adams e Don Pullen, ou de Roland Kirk, e de uma forma mais intensa, em Eric Dolphy.
Não pretendo ser redutor e limitar o free a esporádicos aparecimentos pontuais, pois são patentes as suas influências em casos de improvisação colectiva (aqui comum também no Dixieland e New Orleans), ou quando os músicos se propôem improvisar sem se sujeitarem a uma pré-determinada tonalidade, ou instituírem uma estrutura como base de apoio ou pretexto para improvisação, o mesmo se aplicando a uma cadência rítmica fixa ou previamente estabelecida.

? Estabelecendo o ponto da situação, verificamos:

A estética Jazzística que tomei como definidora do rumo a percorrer é formada por elementos provenientes de diferentes estilos fundamentais dentro da história cronológica do Jazz. Funcionam como as fundações de uma casa, e como pilares de sustentação, temos:
? Mainstream (ou middle-jazz) e Swing
? Blues (Worksongs, Gospel e Early Blues)
? Be Bop (e relativos, como Funk Jazz, West Coast e Soul Jazz)
? Free (e New Thing)
acrescentaria:

? ETNO JAZZ
Esta outra componente consiste em adoptar elementos e referências pertencentes às músicas étnicas, utilizando escalas menos habituais, como a árabe, bizantina, flamenco, oriental, hindu, as pentatónicas africanas, etc..; introduzir cadências rítmicas em tempos compostos, 5/4, 11/8, 7/4, etc..., variando assim do usual quaternário ou ternário, e recordar que o Jazz alargou-se a sabores latinos, afro-cubanos, com colorações vindas das antilhas, da América do Sul, a Salsa Jazz, Bossa Jazz, assim como é de explorar a variedade tímbrica que fornecem os instrumentos étnicos, shenai, rhaita, flautas de bambú, tablas, timbales, temple blocks, darbooka, djembé, cítara, tamboura, uma miríade infindável de instrumentação utilizável, acrescentando variedade tímbrica alternativa à habitual panóplia usada pelos músicos no Jazz, sem esquecer, claro, os de criação mais contemporânea, que recorrem à electrónica, desde o órgão e o piano eléctrico aos samplers, controladores de sopro MIDI e outros processadores de som digitais.
? Neste ponto vou ao encontro daqueles que defendem que o Jazz que se faz hoje em dia deve reflectir o mundo actual em que estamos inseridos, de e-mails, ipods, gps, software & hardware, para permanecer vivo e actuante, destacando-se daquele que cumpre apenas uma função preservadora, como se de um "museu do Jazz" se tratasse.

? Relativamente à interacção com aqueles para quem a arte é criada e se destina, o músico deve estar atento ao seu público, até porque a sua arte não é um acto egoísta, criando apenas para si próprio, para quem está sobre o palco ou só para um punhado de fãns. Não se leia aqui que defendo que se o deva tornar mais simplista, mais acessível a todos, mais "vendável", mais mercantilista, pois o risco é grande de deixar de ser arte para se tornar um produto de mercado.
Também uma posição radical, oposta, não é isenta de tender para a anulação da arte em si, pois penso que fechar-se num hermetismo é o mesmo que adorar o próprio umbigo, auto limitar-se, reduzir o campo de visão, e automaticamente, impedir qualquer tipo de realização artística. Coltrane afirmou: "Penso que a música pode elevar a mentalidade individual, pode criar formas de pensamento superiores".
Por outro lado, algumas convicções que tomamos por inabaláveis aos 25 ou 30 anos podem e tendem a modificar-se, o tempo possibilita que observemos as questões de outras perspectivas, a partir de diferentes ângulos e pontos de vista.
Lembro-me de ver um concerto do Archie Shepp em 75 (76?) na Festa do Avante, ao tempo, ainda na Fil, ou melhor, quase só ouvir, porque entrou de costas para o público, numa atitude visivelmente de superioridade arrogante sobre o público "branco". Fez-nos ouvir o Free que praticava na altura, rude, gutural, enraivecido, revelador do seu modo de ver a sociedade e o mundo, na época.
Volvida uma década e tal depois, o mesmo Shepp brindar-nos-ia com um par de belos álbuns, um de trechos de Charlie Parker reinventados ao seu jeito, apenas com a companhia do contrabaixo do excelente NHOP, infelizmente já desaparecido, e o outro de parceria com Horace Parlan no piano, com deliciosos blues tradicionais, e ambos os registos, se não nos antípodas, porventura estão seguramente a muitos graus de longitude da música que ouvi naquele ano, na FIL. Charles Lloyd é mais um, entre muitos outros exemplos de passagem temporária, episódica e datável pelo Free.
Por paradoxalmente que pareça, o mesmo músico pode praticar, em épocas distintas do seu percurso, estilos bem diferentes. Porque o Jazz é também, ou sobretudo, uma música que reflete a vida de quem o toca, expressa sentimentos, emoções e vivências, um autêntico retrato sonoro da personalidade de um músico.
Nisso consiste uma das várias características ímpares inerentes ao Jazz e um dos seus imensos atractivos, para mim e para muitos outros músicos, melómanos e apreciadores em geral desta forma de arte surpreendente.
O "som da surpresa", como alguém lhe chamou.

Rui Azul

 

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